domingo, 29 de outubro de 2017


O QUE É SER CAIÇARA?

Caiçara é palavra cuja origem tupi, kaai’sa, pode significar “cerca de ramos, fortificação para vedar o trânsito” foi amplamente usada para designar as paliçadas de proteção às tabas indígenas. Em diversas regiões a mesma palavra tem outros significados, todos relacionados com o uso de varas e cerca: “cercado de madeira feito à margem do rio ou igarapé; armadilha para apanhar peixes, feita com ramos de árvores postos dentro d’água (cerco); abrigo ou esconderijo onde fica emboscado o caçador; pescador praiano”.
(Houaiss, 2000).


Hábitos, costumes, comportamento – filosofia de vida

Caiçara é também aquele que usa a cerca de varas (no rio, na casa).
Ser caiçara é também ser consciente de sua origem. “Os primeiros brasileiros surgiram da miscigenação genética e cultural do colonizador português com o indígena do litoral, ocorrida nas quatro primeiras décadas, a qual formou uma população de mamelucos que rapidamente se multiplicou (....) moldada, principalmente, pelo patrimônio milenar de adaptação à floresta tropical dos Tupi-Guarani (....) gerando, posteriormente, um contingente mestiço de índios, brancos e negros, que viria a constituir o povo brasileiro” (Ribeiro, 1987). É dessa amálgama de raças que surge o caiçara, típico representante do litoral paulista, e cada pescador nativo se considera, orgulhosamente, seu digno representante.
Verdade seja dita que o termo “caiçara” tem, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, um significado banal injustamente pejorativo: o caipira, matuto e vagabundo homem da praia. Significado semelhante encontramos no município de Itanhaém para o termo “tabacudo” - homem simples, abobalhado, sem instrução - como são chamados os caiçaras dessa região. Este caráter pejorativo e também a humildade característica do praiano fazem com que as populações caiçaras urbanas sofram certo preconceito de classe social quanto à sua origem.
O caiçara que Dona Iolanda Serra retrata nas suas histórias é o mesmo homem que Seu Zé Carvalho (natural de Rio Verde, no maciço da Juréia-Itatins) nos apresentou nas suas histórias de pescarias e cercos. É uma gente simples, acostumada ao trabalho árduo de sol a sol, que se rege pelas fases da lua para determinar o melhor momento para plantar, pescar, caçar. Este povo praiano, em perfeita harmonia com o meio que o cerca, usa o mar como mercearia e geladeira, coleta na mata todos os seus medicamentos, cultiva a terra da planície litorânea fazendo-a produzir a contento apesar da “muita areia e pouca fertilidade” dos solos da restinga.
Traço cultural muito interessante do caiçara é a sua habilidade no manejo da terra. Tal e qual seus ancestrais indígenas, este povo observa preceitos antigos que garantem a sustentabilidade do solo produtivo. Na cultura caiçara verificamos sempre o respeito pela necessidade de pousio do solo – tempo de descanso prolongado para recuperação da fertilidade -, o uso de todos os artifícios naturais para melhor preservar os fatores produtivos; o plantio direto sobre o restolho, na coivara de tocos que mantêm a umidade natural; a escarificação leve que não agride a cama da semente. Estas medidas também são características em outras comunidades tradicionais e - não se pode deixar de dizer – pertencem à rotina de camponeses, pequenos agricultores e pescadores artesanais, enfim daqueles que fazem a sua vida do dia-a-dia na força do braço, no trabalho artesanal.
O povo caiçara é assim: simples no viver, direto no sentir e no falar. Entre os mais idosos ainda é forte a característica da “falta de ambição”: este desprendimento de riquezas e de bens materiais, esta capacidade de viver bem em condições extremas, o não prever ou se preocupar com o amanhã. Não que este povo sofrido tivesse outras oportunidades melhores e as deixasse de lado por puro desprendimento, não. Trata-se sim, de uma arte muito do caiçara, do praiano, de viver bem com o tanto que a natureza lhe dá.
Uma análise mais aprofundada nos dirá que, com certeza, uma cultura assim estruturada não tem competitividade suficiente para sobreviver às imensas pressões da sociedade moderna. É neste embate que a cultura caiçara vai se perdendo, cortando o contato íntimo com suas raízes autênticas – os ensinamentos indígenas que possibilitaram a sobrevivência dos primeiros portugueses nas matas litorâneas; as adaptações portuguesas da tecnologia necessária à manufatura de alimentos, canoas e redes; o uso das ervas medicinais na cura de todos os males.
As características mais clássicas de um povoado caiçara - aqueles que existiam neste litoral até as décadas de 1940-50 e ainda vivem na memória e nas saudades dos mais idosos - eram as de um grupamento desordenado de casas, isoladas umas das outras, escondidas entre a folhagem e protegidas do vento pela vegetação da orla da praia. Na região estudada, até a década de 1960 os bairros mais distantes do centro da vila ainda mantinham estas características.
O Suarão, em Itanhaém, era um bairro muito arborizado, com árvores nativas, intercaladas por eucaliptos e árvores frutíferas, onde as crianças brincavam, entre as casas, em terrenos amplos, varridos, sem distinção de limite de propriedade. As divisas eram marcadas por uma árvore especial, mais alta, mais imponente, ou por um riacho que atravessava o terreno.
Assim nos conta também a pesquisadora Cristina Adams que estudou inúmeras comunidades do litoral paulista: “Apesar da propriedade ser privada, ela não era cercada e as trilhas permitiam o acesso de todos ao espaço caiçara. A praia era o centro da vida caiçara e ponto de articulação com o mundo exterior. O caiçara se distinguia pela praia a cujo grupo pertencia e a solidariedade entre seus membros era importante fator de equilíbrio, mesmo não sendo regulada por nenhuma organização ou instituição” (Adams, 2000).
Neste litoral de praias amplas e mar batido os núcleos de povoamento caiçara, freqüentemente, eram formados em locais estratégicos e de história antiga – Itanhaém, Peruíbe, Iguape, Cananéia – pontos de referência no litoral sul do estado. Sempre havia uma razão de ser para cada uma das comunidades caiçaras. Hoje, as praias, todas povoadas, são cortadas por loteamentos e povoações sem tradição.
A região escolhida para esta pesquisa abrange os municípios de Itanhaém e Peruíbe com suas praias longas - Praia Grande, Praia de Peruíbe, Praia do Una - e antigos núcleos caiçaras: Vila de Itanhaém, Suarão, Camboriú, Rio Acima, Guaraú, Peruíbe, Parnapoa, Vila Barra do Una, Praia do Una. Ilha Comprida: uma só praia-ilha, que se alonga de norte a sul, com pequenas comunidades caiçaras escondidas na proteção do jundu, nas margens do Mar Pequeno, entre elas, Juruvaúva, Trincheira e Pedrinhas, que são relativamente recentes, do século XX, com 50 a 80 anos. O município de Iguape, caiçara por excelência com as comunidades de: Vila de Iguape, Peropava, Itimirim, Prelado, Vila Barra do Ribeira, Icapara, Mumuna, Jaerê, Subaúna; e o município de Cananéia: a própria vila de Cananéia, Prainha e São Paulo Bagre e a Ilha do Cardoso (Ipanema, Pereirinha, Cambriú, Foles, Ilha da Casca, Marujá, Ariri). Estes nomes compõem o litoral sul do estado de São Paulo. São estas as comunidades caiçaras mais representativas culturalmente.
A riqueza cultural do caiçara está na sua imensa capacidade de adequar conhecimentos antigos, ancestrais até, de outros povos e origens muito distantes - européia, indígena, africana – gerando condições objetivas de sobrevivência para pequenas comunidades em regiões de pouca riqueza e investimento institucional.
Com criatividade e habilidade o caiçara se amoldou ao meio sem grandes conflitos ambientais. Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou antigos conhecimentos indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e alimentares, aprimorou a técnica do entalhe em madeira para construção de canoas e casas de moradia.
Aplicou a técnica agrícola mais apropriada ao clima e solo da região de restinga – solos pobres e rasos – garantindo assim uma rotatividade maior de colheitas. Esta técnica indígena, conhecida como coivara ou roça de toco, é amplamente difundida em todas as regiões brasileiras onde predomina a agricultura de subsistência. Basicamente a coivara é uma técnica de manejo do solo adaptada à mais ou menos lenta rotatividade de cultivos, à queima do restolho para reposição de minerais e controle de pragas e à manutenção da cobertura vegetal. O uso da queima sem retirada dos restos promove um acréscimo da matéria orgânica resultante do corte – folhagens, galhadas, tocos - e ajuda na manutenção da drenagem mais adequada, impedindo ou dificultando os processos de lixiviação do solo e na reposição de nutrientes a estes solos, naturalmente pobres.
Como povo constituído de lavradores-pescadores, o caiçara já pescava para sua subsistência muito antes do advento do barco a motor (1930, de origem japonesa), pois a pesca no litoral ainda é feita com aparelhos de origem tanto indígena quanto portuguesa: as canoas de um pau só, cercos e covos (indígenas) e as redes de lanço e arrasto (de origem portuguesa). Sua cultura pesqueira tem a mesma idade das suas origens, pelo menos 300 anos de luta árdua pela sobrevivência.
Nas mãos caiçaras as terras litorâneas produziam tanto mais que abasteciam os mercados de Iguape e Santos com seus produtos básicos – arroz, mandioca, cestaria, cerâmica.
Ao recontarmos os casos caiçaras e ao retratarmos seus personagens identificamos características culturais desse povo. E desta forma ajudamos a resgatar sua memória cultural e sua verdadeira História.

Hospitalidade caiçara

A Praia do Una é uma longa faixa de terra que acompanha a Serra da Juréia, indo desde a Barra do Rio Una, na divisa com o município de Peruíbe, até o costão do Grajaúna. Hoje esta praia pertence somente ao município de Iguape, mas durante o século XVII, mais precisamente em 1647, quando lá foi encontrada pelos índios uma imagem do Bom Jesus da Cana Verde, a Praia do Una fazia parte da Capitania de Itanhaém. Em qualquer época, porém, esta praia teve uma comunidade caiçara que residia em pequenas casas atrás de suas dunas. Algumas pessoas da comunidade contam que na região da Praia do Una, até 1960 aproximadamente, residiam umas 200 famílias. A realidade, hoje, é muito diferente. A comunidade está esparsa, formada de pequenos grupos localizados por toda a extensão da praia, no Grajaúna, no Rio Verde e no Vale do Rio Comprido. Na Praia do Una temos informação de umas 6 famílias que ainda, e apesar de tudo, insistem em permanecer naquela distância e abandono. Talvez porque esta distância os aproxime mais da verdade da vida, ou talvez porque as opções de saírem de lá sejam realmente poucas (o trabalho, todos sabem, não abunda na região). O certo é que as famílias caiçaras da Praia do Una continuam vivendo nos moldes culturais característicos de comunidades isoladas, convivendo com as já costumeiras dificuldades de comunicação, de atendimento social. Não que isto seja motivo de desagrado para os que lá residem: a tranqüilidade do seu dia-a-dia é aliciadora, especialmente para nós que sobrevivemos ao burburinho das cidades. A habilidade da pesca é recompensada quase todas as manhãs com o peixe do almoço do dia. Algo de que o caiçara se queixa com insistência é das dificuldades que enfrentam para fazer seus cultivos: as leis ambientais não lhes permitem o “à vontade” de outrora, quando cada qual escolhia sua leira, seu roçado, de acordo com as necessidades da família e, quando a terra estava cansada, bastava mudar de lugar para deixá-la descansar e ganhar forças.

A casa caiçara, família e vizinhos:

Uma das famílias visitadas na Praia do Una foi a de João de Lima e Irani Monteiro Prado de Lima – ele já entrado em anos, ela ainda jovem, na flor dos quarenta. Dona Irani é filha de João Maurício do Prado e Maria Lúcia do Prado, conhecida família caiçara do Rio Verde, alguns quilômetros mais ao sul. João de Lima e Irani moram na mesma casa há quinze anos. Quando vieram para a Praia do Una, a casa já estava erguida. É uma casa feita com “madeira de praia” ou “salvados”, madeira jogada na praia pelas ressacas e marés. Essa região, ainda até uns 20 anos atrás, era rota marítima, por onde, com certa freqüência, passavam barcos vindos do sul com carregamentos de tábuas. Muitas vezes essas embarcações sofriam com a “viração do mar” na altura da Jureia e, nessas situações, de extremo perigo inclusive, tornava-se necessário que os barcos se desfizessem de parte de sua carga, a qual era jogada ao mar e acabava chegando àquelas praias. Esta situação sempre foi presente na vida do caiçara especialmente em épocas de predominância do transporte marítimo.De resto, ainda hoje, toda madeira boa encontrada na praia é aproveitada para reparos na casa. Este mesmo tipo de relato encontramos nas praias de Itanhaém e Peruíbe – praias extensas e planas onde, até os anos 40, a comunidade caiçara ocupava o jundu.
A casa do Sr. João é uma casa de tábuas sobre pilotis, relativamente espaçosa. Possui uma pequena sala com dois sofás, televisão e aparelho de som. Liga-se esta sala com uma ampla cozinha e sala de refeições. Na cozinha principal existe um fogão a gás de seis bocas, bastante novo e uma geladeira também a gás. Em um anexo fica o tradicional fogão de lenha, bastante usado para cozinhar e defumar peixe (principalmente o peixe, pois hoje em dia a carne de caça é escassa e proibida). Neste final de semana (8 e 9 de dezembro de 2001) a casa da família estava cheia de visitas de Peruíbe – os jovens da família já não moram nas ‘lonjuras’ mas, sempre que podem, voltam para matar a saudade. Essa casa possui duas placas solares que fornecem energia para alguns pontos de luz.
Fomos recebidos com extrema cordialidade por Dona Irani e seu sobrinho Alaércio. Esse caiçara, de idade entre 20 e 25 anos é nascido ali naquela casa, mas como muitos outros jovens da comunidade, mora e trabalha em Peruíbe. Após as apresentações e explicações iniciais, Alaércio, mostrou-nos o “tráfico de farinha” que há nos fundos. O “tráfico” está parado já que Seu João, com problemas de saúde, não tem feito farinha. Também, como diz ele “a roça de mandioca ainda está muito verde” desde que foi plantada há pouco mais de um ano. Assim que estiver no ponto e a “saúde” deixar, ele vai voltar a fazer farinha de novo. Dona Irani fez questão de lembrar que o “tráfico está uma bagunça e muito sujo”, mas que lá sempre é tudo muito limpo de “fazer gosto”. De fato nota-se, como regra geral, nas casas daquela praia, um enorme asseio em todo lugar, apesar da pobreza.
Dona Irani nasceu no Rio Verde que era um lugar muito “movimentado”. Nos conta que:

“Na época dos mutirões nas roças vinha gente de tudo que é lugar pra trabalhar o dia todo e depois jantar e ficar prô baile até de manhã. Era concorrido porque lá a gente era mais de vinte moças e todos os rapazes vinham. Vinha gente da Barra do Una e de Iguape (Praia da Juréia). Era muito bom. Isso se acabou há muito tempo. A Praia do Una nunca foi um lugar de pescadores. Todos sempre trabalharam na roça. A pesca era só pro sustento. Ninguém tinha barco ali. Quem tinha barco ficava na Barra do Una que tem barra de rio e porto”. (Dona Irani).

Na casa mais próxima à deles moraram Dionísio e Benedita. “Seu Dionísio e Dona Benedita eram muito vizinhos nossos”, dizia Dona Irani: uma amizade a toda prova, como a própria vida mostrou depois. Primeiro morreu o Sr. Dionísio e então a Dona Benedita ficou morando com ela e o Sr. João de Lima, até o dia em que morreu também. Eles não tinham filhos nem outros parentes. A casa ficou abandonada. Agora não têm vizinhos.
Alaércio trabalha em Peruíbe com esquadrias e portas, colocando fechaduras e trincos. Aos poucos, durante a entrevista, foi se soltando e acabou por mostrar uma réplica de um barco grande de pesca que havia encalhado uns dois anos antes, mais ou menos em frente à casa do Sr. João de Lima. Ficamos impressionados com os detalhes e o acabamento. Foi feita a partir de uma fotografia fornecida pelo proprietário da embarcação que passou quase um mês na casa, até desmontar as peças aproveitáveis, exemplo da habilidade artesanal caiçara. Segundo Alaércio “é uma judiação o que fizeram com o povo dali, não deixando ninguém quase plantar, pegar uma caça, um palmito pra comer, e depois também não existe emprego”.

“Fomos convidados a almoçar lá na casa da Dona Irani, como eles disseram: aproveitar do peixinho frito. Apesar da fome e do cheirinho do feijão relutamos bastante pra não ser mal educado e aproveitador” (David, caiçara de Peruíbe que serviu de guia ao pesquisador). Depois de muita insistência resolveram aceitar e então ao sentarem à mesa, descobriram que a comida era só para os dois pesquisadores. E Dona Irani explicava: “sabe, acontece que a gente acordou muito tarde e tomamos café reforçado faz pouquinho e então a gente só vai comer mais tarde” (Dona Irani). Só ao sairem da casa é que perceberam que aquela refeição representava um hábito antigo daqueles lugares onde ninguém andava por aquela imensidão de praia sem comer alguma coisa na casa de alguém. Foram embora com a recomendação de tomar cuidado com o sol e levando um remédio de citronela colhida no quintal e feita às pressas na hora. Esse remédio é feito da seguinte maneira: a citronela é picada em pedaços de uns dez centímetros, junta-se uns dois dedos de álcool e um tantinho de vinagre para conservar. É esta uma receita para espantar os mosquitos que Dona Irani diz ter aprendido com o pessoal do barco que encalhou ali. É uma pena o uso do vinagre nesta receita, que altera irremediavelmente o agradável cheiro da citronela. Sob seus efeitos não podemos atestar já que não houve necessidade de utilizá-lo.

Comportamento caiçara – educação camponesa

....nóis tamo indo pra Iguape,
nóis tamo indo a pé,
na casa do caiçara nóis vamo pedi café...
(trecho de música, Ernesto Zwarg, de Itanhaém)

“Bom dia, seu dotô” –cumprimentou o homem que passava de bicicleta.
Surpreso, Dr. Fabio respondeu tardiamente ao cumprimento. No entanto, o médico não conseguira reconhecer quem o cumprimentava com tanta simpatia. Em seguida, ainda surpreso, porém mais atento, respondeu com prontidão aos cumprimentos matinais de um segundo e também de um terceiro homem de bicicleta a caminho da pesca ou do mercado naquela manhã de um sábado ensolarado: eles o haviam reconhecido como antigo e venerado médico da cidade e o cumprimentavam espontaneamente. O médico, conhecedor profundo do ser humano, demorou um pouco para reconhecer no gesto daqueles homens uma das características mais presentes na cultura do “verdadeiro caiçara” – sinal de respeito e boa educação, com o cumprimento também agradeciam pelas inúmeras vezes em que precisaram de seus préstimos”.

Este pequeno relato foi contado pelo próprio médico, Dr. Fábio Vernalha. É atual – da Itanhaém de 2002. E mostra uma característica muito interessante e agradável da educação tradicional camponesa.
O comportamento afável e interessado, carinhoso até com os estranhos que são sempre bem recebidos nas casas caiçaras partilhando do “de comer” – esta característica tão reconhecidamente das culturas de raíz. Usufruímos os benefícios deste comportamento durante todo o trabalho de pesquisa. Assim foi na casa da Dona Faustina Messias, em Itanhaém, onde a conversa começou na sala e terminou na cozinha junto ao fogão de lenha (ficamos, inclusive, de lá voltar para provar do seu feijão, convite amorosamente estendido) ou na casa da Dona Maria Marques, na Ilha do Bairro do Rio Acima, que nos mostrou toda a sua roça, ensinando o porquê de cada coisa que havia por lá. Depois ofereceu, para provar, um pouco de doce de melado, delicioso, feito da cana-de-açúcar cultivada por ela própria. Este doce de melado é usado também para adoçar o café. Em ocasiões o café é fervido e passado no caldo puro da cana de açúcar – é o café de melado. É este café que o caiçara da Ilha do Bairro gosta muito de tomar engrossado com punhados de manema, farinha de mandioca fermentada.

Aspectos da educação infantil

Nas comunidades mais isoladas a criança caiçara não freqüentava escolas nem, muitas vezes, tinha outras crianças para formar um grupo de amigos. Verifica-se que a educação se fundamentava na vivência direta com o ambiente natural da Mata Atlântica, das praias e pescarias, os trabalhos rotineiros de manutenção da famosa “linha do telégrafo” - eixo orientador dos caminhos do povo caiçara no litoral sul do estado. Os brinquedos usados pelas crianças caiçaras eram fabricados artesanalmente por elas mesmas, imitando o adulto na sua rotina diária. Escola não havia, mas a criança caiçara aprendia, no dia-a-dia, os princípios fundamentais do seu povo - trabalho, criatividade, coragem, responsabilidade – presentes nas histórias de final de tarde, nas letras das músicas cantadas em festas típicas, na religiosidade impregnada em cada uma das ações da comunidade.
O relato escolhido caracteriza uma criança caiçara criada na realidade específica da manutenção da linha do telégrafo e, claramente, mostra a criatividade e habilidade de um povo. José Carvalho (Maia), nascido no Rio Verde há 68 anos, foi profissional de manutenção dos fios e postes do telégrafo durante grande parte de sua vida, assim como seu pai e outros familiares. Naturalmente, o que este homem aprendeu na vida desde a infância transformou-se em profissão e sustento. Hoje exerce as funções de vigia da Estação Ecológica Juréia – Itatins, oficio também aprendido na infância quando cuidava da caça, do covo para peixes, da pequena rede de cipó.

“...pois se nem roupa direito eu tinha, como é que eu ia ter brinquedo, né? Minha mãe fazia boneca de pano para as meninas, com trapo de roupa. Eu fazia carrinho de madeira com a madeira do caixote de maçã que dava na praia. Naqueles tempo dava. Eu aproveitava toda a madeira e os pregos. Depois aprendi a fazer avião de caxeta, com asa, com hélice, direitinho. Fazia canoa de caxeta, também. Eu fui criado solto. Quando cresci mais um bocado; eu nunca brinquei com amigo, com ninguém, ficava sozinho, eu fiz um telégrafo. Tinha poste com duas travessas, assim, e era bem grande, como daqui no Guaraú. E tudo com fio... de planta! (completou rindo à vontade). Fazia os fios de “capuíra”, sabe qual é? aquela de flor azul, assim! Tirava todos os galhinhos e ia inmendando, inmendando, até. Usava de fio elétrico. Numa ponta, eu fiz um posto do telégrafo, coberto de palha, no pau a pique. Fiz um telefone de madeira, com manivela que girava e tudo. Eu entrava lá, girava a manivela e dizia: Alô! Alô! E eu mesmo respondia, claro, era só eu, né? e falava: “Tá com pobrema na linha, tem que consertar! (rindo muito). Eu fazia um cavalo de folha de coqueiro, aparava tudo e tinha rédea. Eu quebrava a ponta da folha, só quebrava, pra parecer um rabo do cavalo. Na outra ponta eu dobrava ela e amarrava, assim, pra ficar com a cara do cavalo. Eu pegava o “rolo dos cabos do telégrafo” que era também de capuíra e zarpava, ia correr a linha (consertar os defeitos). Olha, cristão, eu sempre brinquei sozinho, nunca vi um banco de escola, cê acredita?”(José Carvalho, Rio Verde, Juréia)

Caiçaras da Estação Ecológica da Juréia – Itatins

Rio Verde – Ponta de Parnapoa - Arpoador
Dona Iolanda Serra é uma senhora miúda, com seus 66 anos bem marcados na miudeza do talhe, vincados nas rugas da face. Casada com Seu Avelino Rodrigues (72 anos), guarda da Estação Ecológica da Juréia-Itatins. Hoje a família vive em uma pequena casa de madeira no Núcleo Arpoador, depois do Guarauzinho. Este núcleo, cujo acesso se dá atravessando a desembocadura do rio Guaraú, em Peruíbe, tem um centro para pesquisadores e vigilância. As casas do núcleo ficam defronte ao mar de onde se avistam algumas ilhotas. A praia que aparece na maré baixa só é freqüentada por grupos esporádicos de surfistas – o acesso a estas praias é restrito por força de lei, já que deste ponto do litoral até Iguape estamos em área da Estação Ecológica Juréia-Itatins. Apesar da idade avançada e da perna aleijada, Seu Avelino é um dos guardas mais respeitados, por seus conhecimentos da mata e disposição para ensinar. Também é mestre canoeiro – com jeito ainda consegue entalhar uma boa canoa em algum “pau caído” que pode servir para muita pescaria por aí. Foi assim a história da canoa que ele fez no tronco da figueira brava derrubada pelo raio – era uma árvore imensa, a copa queimou com o raio, um tronco grosso e reto, de boa madeira. O diretor da Estação Ecológica autorizou o velho artesão a usar aquele tronco caído. Seu Avelino ficou mais de mês trabalhando o tronco, desbastando no machado, alisando na enxó, até que a canoa ficou pronta. Foi preciso a ajuda dos outros guardas para levar a canoa até o rio. Uma canoa linda, leve e firme, não muito grande, mas com o equilíbrio perfeito. Esta canoa serviu às suas travessias do Guaraú até o dia em que uma onda traiçoeira a jogou nas pedras; mesmo assim foram dez anos de muita água para um tronco que ninguém dava nada por ele, apodrecendo na mata sem serventia nenhuma; e poderia ter durado mais de cinqüenta anos não fossem as pedras e a ressaca. Esta é uma história bonita, de prazer e utilidade nas coisas simples que o caiçara sabe.
E Dona Iolanda continua sua história enquanto tomamos o café ralo e doce, sentados à mesa tosca da cozinha:

“O Caminho do Imperador passava por toda essa terra, é a estrada do telégrafo, é o mesmo caminho – atravessa de Santos até Iguape, cruzando a serra, as praia, por uma trilha sempre a mesma. Passa por Parnapoa, lá a praia onde nóis moramo, vai bordejando até Vila Barra do Una, faiz a Praia do Una até o Rio Verde e o costão até a Praia da Juréia. De lá para Iguape é um pulinho. Esse é o caminho mais importante daqui – por ele a gente vai na procissão do Bom Jesus de Iguape. Nois já num vamo que o Avelino num guenta tanta caminhada, mas quem gosta vai ainda. Antes esse caminho se mantinha sempre bem limpo, dava pra ir de a pé ou de cavalo, quem tinha, é claro. Bem rapidinho se chegava até Santos. Tanta veiz que nóis fazia esse caminho; quando alguém adoecia era pior, mas ia também pras festa, pra Folia de Reis. Quando ia algum doente, a gente tinha que carregar, era difícil – andando bem num dá pobrema, carregando arguém é pesado demais. Eu sou da família lá do Rio Verde, dos Serra. Só vim pra cá depois de casada. Meu avô era português, chamava Antonio Serra e minha avó era índia, chamavam ela de Maria Verde, era nascida lá no Rio Verde mesmo. Vocês lembram daquela música do Ernesto Zwarg sobre o Correio de Iguape? Aquele que casou com a “índia da Juréia”? Pois, esta índia era a minha avó – fui eu que contei o caso pro Ernesto uma veiz que ele ficô posando em casa. Hoje todo mundo sabe a música, canta muito ela na procissão do Bom Jesus”.

(Refrão) Itanhaém da Praia Grande tão bonita,
Uma saudade que é infinita.

O correio de Iguape que chegava a Cananéia,
Namorava uma índia lá na serra da Juréia.
Saía de São Vicente, nem ligava pra maré,
Praia Grande, Peruíbe, percorria tudo a pé.
Mas chegando na Juréia, que nas nuvens se escondia,
Só por causa desta índia, do correio se esquecia.
Certa vez na primavera nem chegou a Cananéia,
Dizem que ficou pra sempre lá na Serra da Juréia.
(O Correio do litoral, música de Antonio Bruno e letra de Ernesto Zwarg)

As lembranças de Dona Iolanda fluem como água da fonte. Ela conta o que lembra, sempre com um sorriso nos lábios, olhando-nos com curiosidade. Nós ouvimos e anotamos, fazemos comentários, o gravador trabalhando sem parar; pedimos explicações sobre tudo (do fogão à lenha aos remédios de ervas que ela costuma usar – até as receitas de peixe queremos conhecer). Dona Iolanda não entende por que agora o pessoal da cidade está tão interessado nestas coisas da sua vida simples de praiana, mas sem se acanhar vai mostrando toda a riqueza embutida na sua cultura.

O socorro que vinha dos céus

Duas figuras marcam a memória dos mais antigos Juréia: são estes o aviador Bertelli, de Iguape, suas peripécias e relacionamento fraterno com os caiçaras da Praia do Una, na Juréia e o médio, Dr. Nogueira, de Itanhaém, sempre pronto a socorrer que necessitasse, aterrisando com seu teco-teco vermelho em qualquer praia mais aberta.

Bertelli era um sujeito meio maluco - descia naquele aviãozinho com qualquer tempo mesmo, na praia lisa de vento. Se tinha combinado de vir, pode ter certeza que ele chegava: era para trazer uma encomenda, um remédio, ou então, para levar o peixe que ia ser vendido. Era um amigo. Naqueles tempos de antes, aí por 1940-50, era ele vindo de Iguape e o Dr. Nogueira, no aviãozinho vermelho dele, vindo de Itanhaém. O médico, o mais corajoso de todos os tempos, sabia de um tudo: até curou gente de picada de cobra braba, dizem que até de picada da urutu-cruzeiro ele já tinha salvado gente. Bom, o doente tinha que tomar umas gotinhas de querosene com água, muitos salvavam. Bastava o telégrafo avisar que tinha alguém precisando do médico, aonde fosse ele ia – descia na praia também, e já trazia o remédio junto, que farmácia lá não havia.

Os feitos de amigos tão heróicos ainda povoam a saudade dos mais idosos das comunidades caiçaras: em Itanhaém, em Iguape e, mais ainda, na extensa Praia da Juréia os dois valorosos aviadores da década de 40 ainda vivem na lembrança daqueles que, hoje avós, ouviram estas histórias quando meninos ou mesmo as presenciaram.

Mutirão e fandango

Mutirão tinha sempre, na roçada, na colheita, de safra em safra. Era quando o povo se reunia para ajudar uns aos outros. E o baile, no final, era até o sol raiar. Hoje não tem quase quem toque, quem dance. Ninguém quer trabalhar para o outro sem ganhar. E aí também não tem festa no final.

O mutirão, em algumas comunidades também chamado de ajutório (Cachoeira do Guilherme, Juréia) ou demão (Itanhaém), é uma forma comum de trabalho coletivo em todas as áreas onde ocorre agricultura de subsistência. Ora na terra de um, ora na terra de outro, todos ajudando dispensavam maquinário – que não teriam mesmo que quisessem – e não perdiam o tempo bom para que a colheita fosse produtiva.
Nas comunidades caiçaras o sistema de entre-ajuda é fundamental para que cada um possa enfrentar as grandes tarefas que dependem de muitos braços para a sua realização em curto espaço de tempo. É o caso das colheitas que têm que ser feitas antes das chuvas, da cobertura de sapé do telhado, mesmo do taipamento da moradia, das queimadas, das roçadas de grandes extensões. O espírito comunitário que prevalece entre os moradores não distingue se o beneficiado é um, uma família, ou são todos.
Esta prática, que para a sociedade urbana parece impossível ou, pelo menos, de difícil realização, é comum em todas as comunidades rurais onde o conceito de propriedade privada se reduz aos pertences de uso pessoal e familiar. Mesmo nesses casos, existe sempre a disposição de ceder à necessidade do vizinho ou do visitante.
“Apesar de a atividade agrícola ser essencialmente individual e familiar, as trocas e empréstimos de produtos, a prestação de serviços e a ajuda nos trabalhos, sob a forma de mutirão, levavam a uma distribuição mais ou menos eqüitativa dos produtos obtidos nas culturas”, (França, 1954).
O isolamento das comunidades em relação à vida urbana e à ação das instituições nacionais propicia a criação de sólidos laços de solidariedade que são transmitidos através das gerações, os únicos que dão significado à comunidade como uma unidade de proteção e estímulo.
Em Peruíbe, segundo os relatos que recolhemos, a pesca era uma atividade comunitária, em mutirão, organizada em função do horário do trem para Santos. Assim, no dizer do Sr. Alécio,
“Peruíbe acordava às quatro da manhã ao som de uma corneta específica de um pescador cujo dia a ele estava determinado como “no mando da pesca”. Todos possuíam cornetas e sons específicos seus. A pesca era feita no próprio rio Preto e consistia na apanha dos peixes dos cercos (tainhas, robalos, etc.). Isto era necessário, pois os cercos mais próximos da desembocadura eram mais fartos que os de montante, tornando o rodízio uma forma mais justa de convivência. Todos participavam. Depois de pescados e limpos, os peixes tinha de ser embarcados para Santos no trem do tal horário. Não havia gelo para conservação, daí a urgência e a necessidade.” Pescarias como a descrita acima também podiam terminar com grandes festas, como a da pesca de arrastão no dia do santo padroeiro da cidade, São João da Boa Vista.
E como sempre, na alegria da vida e da saúde, o trabalho coletivo termina em festa – o mutirão era motivo para o baile já que juntava toda a comunidade em volta de uma alegria comum e o dono da terra oferecia sempre algo de comer e beber no final do dia. O fandango, dança popular tipicamente ibérica, veio para o Brasil durante o século XVIII e foi assimilada tanto pelos colonizadores como por seus descendentes, gerando o que se pode chamar de “fandango caiçara” dançado em soalho de madeira, que corresponde à dança de pares e sapateado, ao som de viola, rabeca, pandeiro e vozes, ruidosamente animada pela aguardente. Ainda hoje alguns grupos de fandango se apresentam pelas comunidades numa tentativa de recordar os sons e passos da cultura raiz.
Como em outras festas e comemorações, estes encontros que começam com o trabalho coletivo e terminam em bailes, proporcionam também a aproximação entre os que desejam casar e formar uma nova família. Nas lembranças caiçaras permanecem os mutirões e os bailes na Cachoeira do Guilherme, que mesmo com a proibição de bebida alcoólica (herança de uma comunidade espírita) eram sempre concorridos. Os bailes no Rio Verde, onde 20 moças casadoiras esperavam pretendentes, também alvoroçavam a comunidade de Praia do Una. No Parnapoa, o mutirão para a colheita do arroz criava expectativas – era uma comunidade “rica” - em produtos e filhas.
E assim, ao ritmo da viola e da rabeca feitas artesanalmente pelas mãos caiçaras, foi se formando esta vasta rede de comunidades espalhadas pela franja litorânea.

Lenhadores – escravos de sua gente

“Eu vi muitas camas de vara nas “cabanas” dos lenhadores do Seu Marques (essa é uma história triste, a dos lenhadores que cortavam lenha na mata para as locomotivas “Maria Fumaça” da Estrada de Ferro....). Eles eram assalariados de uns impiedosos empregadores - o mais conhecido por aqui pelo Suarão era o José Marques- que os escravizava. Construía acampamentos ao redor de sua casa, para moradia dos empregados e tinha uma venda onde comerciava mantimentos, roupas e cachaça. No fim do mês, em lugar de pagá-los com dinheiro, pagava com cartões que só valiam na sua venda, de modo que só ali podiam comprar... Além disso, havia uma caderneta, onde eram assentadas as dívidas e eles estavam sempre devendo, naturalmente. Para saírem do emprego, tinham que fugir de madrugada a pé, pela praia, e pegar, já longe, o primeiro trem da manhã para ir a um lugar distante, senão o delegado, avisado pelo Marques, ia atrás deles. O dia inteiro eles passavam no “lenheiro”, lá perto do rio, abrindo grandes clareiras e a lenha era transportada para a beira da estrada em “decauvilles” – aqueles trenzinhos puxados a varejão, que depois foram muito usados para levar bananas para o porto ou para a estação da estrada de ferro. O acampamento onde eles moravam (eram todos solteiros) era formado de barracos minúsculos, com telhado de sapé e a cama era de varas. Um simples estrado feito de varas roliças, suspenso a uns 50 centímetros do chão; fixo, pregado ao chão e às paredes, em um ângulo do único cômodo da casa. Era coberto de uma camada de palha seca, de sapé, à guisa de colchão...”(relato de Samuel Branco, Suarão – Itanhaém).

A Onça (causos do mato)]

“Seu Fortunato sentiu a onça seguindo a trilha. Ele na frente, ela atrás, bafejando o rasto. Que fazer! Com onça braba não se brinca! Seu Fortunato levava só a foice, tava saindo do roçado. E continuaram os dois andando.... Aí foi que seu Fortunato resolveu parar no bambual e começou a cortar bambu; fazia uma barulheira; a onça parada esperando, ele cortando e ajuntando um amarrado cheio de pontas que prendeu nas costas. Se ela atacasse se espetava toda. Mas a danada da onça continuou seguindo a caça (o homem só não é caça de onça se tiver bem armado, isso é verdade). De repente seu Fortunato resolveu, parou e virou gritando e gesticulando com a foice na mão. Deu sorte que a onça assustou, e correu. Dessa vez passou.”

- “Você sabe, Alice, que a onça segue mesmo a gente? Essa história eu ouvi contar há muito tempo da boca do próprio seu Fortunato, hoje já falecido. Ele era um homem valente, dos antigos. Até eu já passei por isso. A onça me seguiu quando voltava de uma praia da Juréia com o pessoal da Tribuna. Era uma onça parda – dizem que não é brava, mas é onça. Tivemos que pegar uns paus para afugentá-la” (Ernesto Zwarg, Itanhaém).

Este “causo” foi recolhido em conversa com Ernesto Zwarg – ambientalista reconhecido, caiçara por adoção e profundo conhecedor dos caminhos deste litoral. É este um de tantos “causos” engraçados que podem ser ouvidos numa conversa amena de final de tarde. Retrata toda a coragem e criatividade do homem do campo, obrigado a “inventar” a solução urgente e imediata para seus problemas. A cultura caiçara é cheia de coragem, de iniciativa, de não arriar a cabeça diante de problemas, aparentemente, insolúveis. Os ensinamentos que trazem estas histórias, algumas vezes reais, muitas vezes fantasiosas, são sempre positivos no sentido do enfrentamento das dificuldades. Bom, foi mesmo assim que sobreviveram estes homens e mulheres que formaram a comunidade litorânea, a nacionalidade brasileira.

O cemitério da Praia do Una e o Bom Jesus de Iguape

A casa mais próxima do ponto onde foi encontrada a estátua do Bom Jesus era a de Benedito Gualdino. Na sua vizinhança estava o único cemitério das redondezas. Seu Benedito era seu zelador. Sua casa tinha até um pequeno altar, lá se reuniam as pessoas da comunidade para rezar – era um ponto de encontro para aqueles que precisavam de um benzimento, de uma ajuda, era onde o povo fazia as rezas de terço, as festas de finados. À este cemitério estão ligadas lendas antigas como a do “corpo santo” e a revoada de tucanos quando foi enterrada uma jovem pura e a do “corpo seco”, quando enterrado alguém que morreu em desavença grave com os pais. Estas e outras lembranças foram estudadas por Miguel Mahfoud em sua dissertação sobre a Folia de Reis (Mahfoude, 1996).
Benedito Galdino foi um típico representante caiçara da comunidade de Praia do Una, em Peruíbe. Respeitado e admirado pelos integrantes desta comunidade ainda hoje é lembrado por sua atitude singela e respeitosa perante as tradições religiosas do povo caiçara. Sua atitude perante a vida nos exemplifica um traço cultural marcante desta cultura hoje praticamente extinta – a veneração e o respeito, pode-se dizer que eternos, aos cultos tradicionais, sejam estes religiosos ou pagãos. Assim contam a história na Praia do Una.

Esta era uma comunidade que tinha cemitério: “Antigamente, o povo enterrava os mortos no cemitério do Una que foi o local do achado da imagem de Bom Jesus de Iguape. Depois, foi proibido também enterrar lá porque o cemitério não é reconhecido. A última vez que enterraram alguém lá foi em 1962, quando morreu a Alice que tinha uns 18 ou 19 anos... Depois disso, na primeira vez que enterraram outro lá (ela não lembra quem) vieram ‘os médico’ de Peruíbe e desenterraram pra fazer autópsia e não devolveram o cadáver. Então, depois disso, o povo desistiu de enterrar lá. Também pra quê, né? É dois serviços, um de ‘ enterrá’ e outro de ‘desenterrá’.” (Dona Irani)

Lembranças de um pescador do Rio Una

“Apontava a manhã na Vila Barra do Una. Seu Alaôr caminhou até a margem afundando levemente os pés descalços na lama preta do rio. Caminhava pensando nas tarefas que tinha diante de si, os pequenos uçás e marias-farinha fugindo em desabalada diante dos seus pés, desaparecendo nas tocas como por passe de mágica.
O pescador desamarrou a canoa que descansava no seco da vazante e, com um leve gemido, a fez deslizar para as águas escuras e calmas do rio. De um salto, com a agilidade do gato, entrou na canoa antes que esta se afastasse. Sem barulho manobrou o remo com destreza pondo a canoa no rumo pelo raso da margem. Ia em pé, apoiado no remo que tocava o fundo lamacento. Sem grandes esforços bordejava o mangue. À frente martins-pescador davam rasantes na imóvel e negra superfície da água.
O cerco, montado há já quatro meses na Volta Morta do Una distava vinte minutos da pequena vila. O pescador pensava: “essa tinha sido a melhor temporada de tainha de sua vida”. Não que se ganhasse dinheiro grosso, que isso o japonês de Santos era esperto e sempre tinha uma desculpa para o preço do peixe. Também, dizia ele que chegar a Peruíbe era difícil - tinha que vir de caminhão, atolando e desviando das marés, pra não ganhar quase nada pra si. Era o que ele sempre dizia. Tinha o preço do diesel, o preço dos pneus, o preço do entreposto e um monte de outras coisas. Quando o peixe ia de trem, era o preço do gelo, o preço do aluguel das carroças que tinham de atravessar o areal branco de Peruíbe até a estação. E nisso tudo tinha também as coisas do governo, coisas que Seu Alaôr não entendia e nem podia discutir. Ele só entendia que a tainha ali, naquele ano de fartura, graças a Deus, tinha sido tanta que parecia estória de mentiroso. A temporada ia pelo finzinho e a tainha não ia mais entrar de cardume cheio, tanto que a água parecia ferver no rio como em quase todos os dias no mês passado. Pelas contas dos camaradas da equipe, tinham matado perto de dezoito mil tainhas naqueles quatro meses de cerco. Feitas as contas, pra ele tinha sobrado o dinheiro da venda de umas duas mil, pelo grosso, no baixo. “E, pra onde tinha ido esse dinheiro, Alaôr?”, ia se perguntando enquanto se aproximava do cerco e já vendo a movimentação das canoas dos camaradas que tinham chegado antes dele. O Agostinho e o Pedro Salomão pelo menos, tinham se juntado pra comprar um motor de centro pra canoa “Izilda”. Pelo jeito, essa novidade de motor ia mudar muita coisa na Vila. O sogro, Seu Vitôr, tinha comprado sessenta braças de pano de rede pronta. Ia dar um trabalhão entralhar aquele pano todo, com chumbada e bóias. Era serviço pra mais de duas semanas, tirando por pouco, até um mês inteirinho, que ali ninguém sabia direito como é que se pescava lá fora, de motor, na malha grande. Tinha consigo que era um risco besta de se perder uma rede cara dessas e ficar com nada depois. Tinha visto muito disso em São Sebastião.
Mas, e ele? O dinheiro sumiu, foi nas compras no armazém do Omuro, em Peruíbe, nas contas do fiado, numa cachacinha que ninguém é de ferro, numa coisinha ou outra pra mulher e pros filhos. Ainda tinha uns trocados a receber, mas era pouca coisa.
Dia! foi falando, enquanto amarrava a proa da canoa no calão do cerco já estranhando a cara séria do Seu Vitôr. Dia! responderam os seis camaradas, sem a ênfase de costume. Que foi que aconteceu? perguntou, enquanto acendia um cigarro e observava as águas paradas no cerco de vinte e cinco braças de largo. O arame enferrujou e abriu o lado todo do cerco. Tá podre. Escapou tudo, tá vazio que nem ostra de casqueiro. Pode esquecer que tudo aí tá enferrujado e vai ser um arruma aqui, dois quebra lá.
A gente tá decidindo que quer parar aqui que num vai compensá mais. Vamo deixá pro ano. Que ocê acha, Alaôr?
Enquanto voltava pra casa pela volta mais comprida do rio pra ir pensando na vida, ia remando de leve, com impulsos fracos, mas ritmados através daquela larga avenida de águas escuras, ladeada pela densa vegetação do mangue. O sol já subia forte no céu azul de doer a vista e o ar se enchia de mutucas zumbidoras. “Era questão de mais dia, menos dia e isso acontecer. Todo mundo sabia da ferrugem. Com a tainha se acabando não ia valer mesmo a pena a trabalhera de consertar ou de trocar o cerco. Não deu pra ganhar muito, não, mas também não foi ruim de todo. Assim era a vida. Dali pra frente podia tentar a caxeta, o casqueiro, o palmito ou até mesmo vender uma caça pro grego do Guaraú. Tinha muito camarada metido nessas coisas. Ia pensar no assunto”.
Já passava das dez da manhã quando Seu Alaôr embicou sua canoa no mesmo ponto lamacento do rio, afugentando de novo os uçás e marias-farinha para suas tocas. Olhou num relance toda a Vila do Una que, naquele tempo, não contava com mais de vinte casas de jiçara e tábuas. Um choro abafado de criança e um latido ao longe, foi tudo o que ouviu como sinal de movimentação. Retirou os balaios da canoa, pendurou-os num pé de jambolão e, respirando com satisfação o ar limpo e salgado, seguiu pelo areal branco sombreado de chapéus-de-sol até sumir de vistas. A vida se vive um dia de cada vez, ia pensando”. (Crônica de Henrique Natividade, pesquisador, fundamentada nas lembranças de Seu Alaôr, 68 anos, Vila Barra do Una).

No decorrer desta pesquisa foram-nos contadas muitas histórias que caracterizam com fidelidade o que é a cultura caiçara, como pensam, agem e sentem os homens e mulheres deste litoral. A história das 18.000 tainhas pescadas no Rio Una pode parecer fantasiosa, pois o número é, com certeza, exageradamente grande para que tenha ocorrido em um único cerco de rio, em uma única temporada de pesca. No entanto torna-se impossível de ser contestado: é história tida como verídica por todos os mais velhos da Vila Barra do Uma. Habita a memória dos pescadores mais antigos, homens hoje com cerca de setenta anos ou mais, que ainda relembram esta memorável temporada ocorrida na década de 60. Seu Alaôr e Seu Vitôr, personagens vivos dessa história, vivem ainda na pequena Vila de Barra do Uma, em Peruíbe – genro e sogro ainda hoje recontam, para quem quiser ouvir, as memórias de um tempo de maior fartura em mar e terra. Um tempo de maior amizade entre os Homens e a Natureza.

Seu Sertório, o barqueiro -um caiçara reconhecido

Sertório Domiciano da Silva nasceu em 28 de setembro de 1898, descendente de índios Tupi Guarani, filho de José Domiciano da Silva e Laurinda Maria das Neves, casou-se em 05 de Julho de 1930 com Vitória Maria da Conceição, com quem teve 12 filhos.
Seu Sertório foi uma figura muito respeitada por todos os que o conheceram. Era barqueiro de travessia do Rio Itanhaém antes da construção da ponte calçada. Este caiçara itanhaense é sempre lembrado com grande saudade e carinho pelos antigos moradores muitos dos quais ainda se recordam de terem feito travessias em sua canoa. Lembram os antigos que a ponte existente era apropriada unicamente para a passagem do trem, que corria por ela praticamente suspenso nos trilhos. Por volta de 1950 esta mesma ponte foi melhorada quando colocaram tábuas largas entre os trilhos para possibilitar a passagem de pedestres. As histórias que Itanhaém guarda sobre este caiçara caracterizam a coragem, a honestidade e a simplicidade deste homem rude de grande sabedoria da vida.
Seu Sertório faleceu aos 90 anos de idade, em Itanhaém. Em sua homenagem a ponte sobre o rio Itanhaém leva seu nome.
Esta “lembrança” sobre o barqueiro foi recolhida no site oficial da Prefeitura Municipal de Itanhaém.
São poucos os caiçaras de origem que tiveram seu mérito reconhecido publicamente e Itanhaém possui alguns desses exemplos: nas letras e artes foram reconhecidos Emigdio de Souza, Urcezino Soares Ferreira, Nilo Soares Ferreira; como vereadores do povo, João Alves dos Anjos, “seu” Odilon e, no trabalho diário oferecendo segurança a quem necessitasse, o humilde Sertório. Caiçaras estes que marcaram culturalmente a região permanecendo na história.

Pintores caiçaras

Itanhaém é pródiga em pintores de origem caiçara. Alguns destes, mais conhecidos (Calixto, Emidio de Sousa) outros menos (Lopes, João Leandro, Milton Poitena). Pintor caiçara pinta representando sua cultura, às vezes com influências clássicas como Calixto, outras na forma do primitivo sentir e ver, como Emidio e Lopes, outros apontado uma herança sem concretizá-la, como Leandro e Poitena. Também os há modernos como Décio de Oliveira. Todos, de alguma forma, retratando sua realidade de vida, sempre caiçara.

Benedito Calixto de Jesus (1853 – 1927), conquistou renome nacional na Escola Clássica e Acadêmica. Calixto já pintava paisagens locais de Itanhaém antes de iniciar seu trabalho como letrista. Autodidata, após ilustrar o cenário de um teatro santista, foi convidado a aprimorar seus conhecimentos em Paris: lá conheceu autores impressionistas e dedicou estudos em ateliers de estilo clássico acadêmico. Sua produção é vasta e de reconhecimento nacional – nas cores de Calixto encontramos retratadas várias cenas litorâneas típicas: o carro de boi cruzando a Praia Grande, as canoas ancoradas em São Vicente, o convento de Itanhaém, a Igreja Matriz de Sant´Anna, o casario na praça central de Itanhaém, o Morro do Itaquanduva, a boca da barra do Rio Itanhaém.

Emigdio Emiliano de Souza (1867 – 1949), itanhaense de raiz, aprendeu a usar pincéis e tintas observando o mestre Calixto para quem trabalhava montando cavaletes, lavando pincéis, carregando telas. Foi reconhecido por Volpi, na década de quarenta, como o primeiro pintor “primitivo” brasileiro e tem vasta produção com estilo próprio bem definido como “primitivismo”. Emigdio pintou até avançada idade retratando, em diversas épocas, a “vila” de Itanhaém e seus moradores, caiçaras como ele. Na sua última residência, na rua Cunha Moreira, pintava no quarto da frente cuja janela abria sobre a calçada de onde era assistido pela meninada local. Emigdio também residiu nas fraldas do Morro Itaquanduva, beirando o rio – lá, seu sítio ocupava o que hoje é o Iate Clube de Itanhaém. Era seu o único portinho para canoas usado por todos os que queriam pescar na Prainha – local privilegiado para a pesca das tainhas que se aproximavam para desovar no rio. Os mais antigos ainda lembram que o pescador Emigdio de Sousa tinha um cachorro mateiro ensinado a avisar seu dono da aproximação de visitantes, concorrentes no uso da famosa praia como pesqueiro.

José Luis Lopes, nasceu em 1953, em Itanhaém, é um caiçara legítimo, um pintor autêntico, autodidata também, que mostra suas telas nas ruas e em algumas das galerias da região, pinta o seu sentir mais profundo, relembra e reafirma suas origens caiçaras de menino. Admirador de Calixto é mais próximo do estilo primitivo de Emidio de Sousa com quem afirma estar em “dívida” já que usa, como fonte de inspiração e modelo, muitos dos motivos pintados por aquele. Lopes nos conta, no seu linguajar pacato, pausado: - “Nasci no Sitio Bom Retiro, lá encima, no Rio Branco. Depois moramos no Morro do Convento – meus pais eram caseiros lá. Minha infância toda foi aqui em Itanhaém roubando fruta no pé, correndo do Miguel Louco na praça, carregando o mastro nas festas do Divino – eu pinto com gosto todas estas lembranças da minha vida. O meu segundo quadro foi este, da casinha branca atrás do convento – hoje só tem as ruínas dela, mas, foi lá que meus pais criaram a gente, 10 irmãos”.
































































quarta-feira, 2 de abril de 2008


O QUE É SER CAIÇARA?

Caiçara é palavra cuja origem tupi, kaai’sa, pode significar “cerca de ramos, fortificação para vedar o trânsito” foi amplamente usada para designar as paliçadas de proteção às tabas indígenas.
Em diversas regiões a mesma palavra tem outros significados,
todos relacionados com o uso de varas e cerca: “cercado de madeira feito à margem do rio ou igarapé; armadilha para apanhar peixes, feita com ramos de árvores postos dentro d’água (cerco); abrigo ou esconderijo onde fica emboscado o caçador; pescador praiano”.
(Houaiss, 2000).


Hábitos, costumes, comportamento – filosofia de vida

Caiçara é também aquele que usa a cerca de varas (no rio, na casa).
Ser caiçara é também ser consciente de sua origem. “Os primeiros brasileiros surgiram da miscigenação genética e cultural do colonizador português com o indígena do litoral, ocorrida nas quatro primeiras décadas, a qual formou uma população de mamelucos que rapidamente se multiplicou (....) moldada, principalmente, pelo patrimônio milenar de adaptação à floresta tropical dos Tupi-Guarani (....) gerando, posteriormente, um contingente mestiço de índios, brancos e negros, que viria a constituir o povo brasileiro” (Ribeiro, 1987). É dessa amálgama de raças que surge o caiçara, típico representante do litoral paulista, e cada pescador nativo se considera, orgulhosamente, seu digno representante.
Verdade seja dita que o termo “caiçara” tem, nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, um significado banal injustamente pejorativo: o caipira, matuto e vagabundo homem da praia. Significado semelhante encontramos no município de Itanhaém para o termo “tabacudo” - homem simples, abobalhado, sem instrução - como são chamados os caiçaras dessa região. Este caráter pejorativo e também a humildade característica do praiano fazem com que as populações caiçaras urbanas sofram certo preconceito de classe social quanto à sua origem.
O caiçara que Dona Iolanda Serra retrata nas suas histórias é o mesmo homem que Seu Zé Carvalho (natural de Rio Verde, no maciço da Juréia-Itatins) nos apresentou nas suas histórias de pescarias e cercos. É uma gente simples, acostumada ao trabalho árduo de sol a sol, que se rege pelas fases da lua para determinar o melhor momento para plantar, pescar, caçar. Este povo praiano, em perfeita harmonia com o meio que o cerca, usa o mar como mercearia e geladeira, coleta na mata todos os seus medicamentos, cultiva a terra da planície litorânea fazendo-a produzir a contento apesar da “muita areia e pouca fertilidade” dos solos da restinga.
Traço cultural muito interessante do caiçara é a sua habilidade no manejo da terra. Tal e qual seus ancestrais indígenas, este povo observa preceitos antigos que garantem a sustentabilidade do solo produtivo. Na cultura caiçara verificamos sempre o respeito pela necessidade de pousio do solo – tempo de descanso prolongado para recuperação da fertilidade -, o uso de todos os artifícios naturais para melhor preservar os fatores produtivos; o plantio direto sobre o restolho, na coivara de tocos que mantêm a umidade natural; a escarificação leve que não agride a cama da semente. Estas medidas também são características em outras comunidades tradicionais e - não se pode deixar de dizer – pertencem à rotina de camponeses, pequenos agricultores e pescadores artesanais, enfim daqueles que fazem a sua vida do dia-a-dia na força do braço, no trabalho artesanal.
O povo caiçara é assim: simples no viver, direto no sentir e no falar. Entre os mais idosos ainda é forte a característica da “falta de ambição”: este desprendimento de riquezas e de bens materiais, esta capacidade de viver bem em condições extremas, o não prever ou se preocupar com o amanhã. Não que este povo sofrido tivesse outras oportunidades melhores e as deixasse de lado por puro desprendimento, não. Trata-se sim, de uma arte muito do caiçara, do praiano, de viver bem com o tanto que a natureza lhe dá.
Uma análise mais aprofundada nos dirá que, com certeza, uma cultura assim estruturada não tem competitividade suficiente para sobreviver às imensas pressões da sociedade moderna. É neste embate que a cultura caiçara vai se perdendo, cortando o contato íntimo com suas raízes autênticas – os ensinamentos indígenas que possibilitaram a sobrevivência dos primeiros portugueses nas matas litorâneas; as adaptações portuguesas da tecnologia necessária à manufatura de alimentos, canoas e redes; o uso das ervas medicinais na cura de todos os males.
As características mais clássicas de um povoado caiçara - aqueles que existiam neste litoral até as décadas de 1940-50 e ainda vivem na memória e nas saudades dos mais idosos - eram as de um grupamento desordenado de casas, isoladas umas das outras, escondidas entre a folhagem e protegidas do vento pela vegetação da orla da praia. Na região estudada, até a década de 1960 os bairros mais distantes do centro da vila ainda mantinham estas características.
O Suarão, em Itanhaém, era um bairro muito arborizado, com árvores nativas, intercaladas por eucaliptos e árvores frutíferas, onde as crianças brincavam, entre as casas, em terrenos amplos, varridos, sem distinção de limite de propriedade. As divisas eram marcadas por uma árvore especial, mais alta, mais imponente, ou por um riacho que atravessava o terreno.
Assim nos conta também a pesquisadora Cristina Adams que estudou inúmeras comunidades do litoral paulista: “Apesar da propriedade ser privada, ela não era cercada e as trilhas permitiam o acesso de todos ao espaço caiçara. A praia era o centro da vida caiçara e ponto de articulação com o mundo exterior. O caiçara se distinguia pela praia a cujo grupo pertencia e a solidariedade entre seus membros era importante fator de equilíbrio, mesmo não sendo regulada por nenhuma organização ou instituição” (Adams, 2000).
Neste litoral de praias amplas e mar batido os núcleos de povoamento caiçara, freqüentemente, eram formados em locais estratégicos e de história antiga – Itanhaém, Peruíbe, Iguape, Cananéia – pontos de referência no litoral sul do estado. Sempre havia uma razão de ser para cada uma das comunidades caiçaras. Hoje, as praias, todas povoadas, são cortadas por loteamentos e povoações sem tradição.
A região escolhida para esta pesquisa abrange os municípios de Itanhaém e Peruíbe com suas praias longas - Praia Grande, Praia de Peruíbe, Praia do Una - e antigos núcleos caiçaras: Vila de Itanhaém, Suarão, Camboriú, Rio Acima, Guaraú, Peruíbe, Parnapoa, Vila Barra do Una, Praia do Una. Ilha Comprida: uma só praia-ilha, que se alonga de norte a sul, com pequenas comunidades caiçaras escondidas na proteção do jundu, nas margens do Mar Pequeno, entre elas, Juruvaúva, Trincheira e Pedrinhas, que são relativamente recentes, do século XX, com 50 a 80 anos. O município de Iguape, caiçara por excelência com as comunidades de: Vila de Iguape, Peropava, Itimirim, Prelado, Vila Barra do Ribeira, Icapara, Mumuna, Jaerê, Subaúna; e o município de Cananéia: a própria vila de Cananéia, Prainha e São Paulo Bagre e a Ilha do Cardoso (Ipanema, Pereirinha, Cambriú, Foles, Ilha da Casca, Marujá, Ariri). Estes nomes compõem o litoral sul do estado de São Paulo. São estas as comunidades caiçaras mais representativas culturalmente.
A riqueza cultural do caiçara está na sua imensa capacidade de adequar conhecimentos antigos, ancestrais até, de outros povos e origens muito distantes - européia, indígena, africana – gerando condições objetivas de sobrevivência para pequenas comunidades em regiões de pouca riqueza e investimento institucional.
Com criatividade e habilidade o caiçara se amoldou ao meio sem grandes conflitos ambientais. Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou antigos conhecimentos indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e alimentares, aprimorou a técnica do entalhe em madeira para construção de canoas e casas de moradia.
Aplicou a técnica agrícola mais apropriada ao clima e solo da região de restinga – solos pobres e rasos – garantindo assim uma rotatividade maior de colheitas. Esta técnica indígena, conhecida como coivara ou roça de toco, é amplamente difundida em todas as regiões brasileiras onde predomina a agricultura de subsistência. Basicamente a coivara é uma técnica de manejo do solo adaptada à mais ou menos lenta rotatividade de cultivos, à queima do restolho para reposição de minerais e controle de pragas e à manutenção da cobertura vegetal. O uso da queima sem retirada dos restos promove um acréscimo da matéria orgânica resultante do corte – folhagens, galhadas, tocos - e ajuda na manutenção da drenagem mais adequada, impedindo ou dificultando os processos de lixiviação do solo e na reposição de nutrientes a estes solos, naturalmente pobres.
Como povo constituído de lavradores-pescadores, o caiçara já pescava para sua subsistência muito antes do advento do barco a motor (1930, de origem japonesa), pois a pesca no litoral ainda é feita com aparelhos de origem tanto indígena quanto portuguesa: as canoas de um pau só, cercos e covos (indígenas) e as redes de lanço e arrasto (de origem portuguesa). Sua cultura pesqueira tem a mesma idade das suas origens, pelo menos 300 anos de luta árdua pela sobrevivência.
Nas mãos caiçaras as terras litorâneas produziam tanto mais que abasteciam os mercados de Iguape e Santos com seus produtos básicos – arroz, mandioca, cestaria, cerâmica.
Ao recontarmos os casos caiçaras e ao retratarmos seus personagens identificamos características culturais desse povo. E desta forma ajudamos a resgatar sua memória cultural e sua verdadeira História.

(in: Cultura Caiçara - resgate de um povo, 2005)